A CRISE
No Brasil, liga-se a televisão, faz-se “zaping” e sem ver qual é o canal, logo se identifica a estação como “televisão de rico” ou “televisão de pobre”. A televisão de pobre dá em directo, durante horas, a retirada pelos bombeiros e a polícia, de uma casa minúscula, de uma mulher que pesa 300 quilos. Dá em directo o socorro a uma mulher que foi atingida na sua própria casa por uma bala perdida de lutas entre bandos rivais. Dá em directo as próprias lutas entre bandos ou entre estes e a polícia. A televisão de rico vive num outro mundo. Dá, de hora a hora, as cotações da Bovespa (Bolsa de Valores de S. Paulo) e, como quem transmite uma missa solene, as cotações da Bolsa de Nova York, as variações cambiais, os preços do ouro, do crude e de outras matérias primas. Seguido de reportagens em directo de Wall Street, da NYSE (New York Stock Exchange – Bolsa de Nova York), comentários de especialistas, etc. Ali não entra problema de pobre. E a pobre não interessa problema de rico, que é coisa que ele não entende. São dois mundos que vivem separados por grades, por corpos pessoais de segurança, por deslocações em helicóptero.
O Brasil é um caso extremo, mas um pouco por todo o mundo esses dois mundos se afastam cada vez mais. Portugal é, na Europa, o exemplo mais escandaloso do desnível entre ricos e pobres. Com a consequente diluição das classes médias, que desaparecem não porque subam ao escalão de cima, mas porque descem ao escalão de baixo.
O slogan do pós 25 de Abril, “os ricos que paguem a crise”, foi uma maneira pateta de iludir a realidade. Só quem fosse muito totó acreditaria nele. Quem parasse para pensar, sabia que no fim quem havia de pagar a crise seriam os pobres e os remediados. Como foi sempre.
Mas, de repente, somos surpreendidos por uma nova realidade: há duas crises. A dos ricos, e a dos pobres. Como é óbvio, a que está a preocupar o mundo que tem voz nos média, é a dos ricos. E que crise é então esta?
Vou dizer uma coisa que poderá espantar alguns dos leitores. Vamos ver se eu a consigo dizer em linguagem que seja entendida por todos: 95% dos movimentos financeiros efectuados a nível mundial não correspondem a transacções reais. Isto é, só 5% dos movimentos de todo o sistema financeiro mundial correspondem a transacções efectivas de bens. O que quer dizer que 95% são movimentos puramente especulativos. E considera-se, nos meios financeiros, que isso é saudável para a economia mundial, pois sem esses movimentos especulativos não haveria “mercado” que suportasse a economia real. É por isso que existe a televisão dos ricos no Brasil, para dar notícias a poucos milhares dos cento e oitenta milhões de brasileiros, do que se passa naquele mundo dos 95%.
Ora, esse mundo é o que tem agora uma crise. Será uma crise que o faça entrar em colapso? Claro que não. Toda a máquina financeira mundial perderia. E não está interessada nisso. Por isso está toda atenta e posta ao serviço da crise, injectando milhões, salvando Bancos, suportando taxas de juro e taxas de câmbio, fazendo, enfim, tudo o que for necessário.
E a crise dos pobres? Essa tem várias facetas, e é mais complicada de resolver sem a compreensão e a ajuda dos ricos, que só ajudarão se se sentirem ameaçados. Isto é, se sentirem medo.
Nos Estados Unidos, e até ver, a resolução da crise do subprime (mercado de crédito de alto risco) que afecta a Banca, passa por pôr fora das suas casas milhares e milhares de famílias. Ali não há panos quentes. Rua.
E no terceiro mundo? No mundo dos pobres dos pobres, onde o problema é a sobrevivência? Onde a fome mata?
Sobre este mundo, sobre este problema, o comunicado do Grupo dos Sete (Os sete países mais ricos do mundo), reunidos este fim-de-semana em Washington (escrevo a 14 de Abril de 2008), não diz nem uma palavra. Preocupa-se apenas, ou especialmente, em reforçar os sistemas de supervisão. Curiosamente, é um homem do sistema, Dominique Strauss-Khan, presidente do FMI (Fundo Monetário Internacional), quem vem pôr o dedo na ferida: Os países pobres enfrentam uma crise alimentar terrível, provocada pelo aumento do preço do arroz, do milho, do trigo. E porque vem um homem do sistema denunciar o problema? Por rebate humanitário da consciência? Julgo bem que não. Como digo acima, por medo. Como ele próprio vem dizer: atenção, que a subida descontrolada do preço dos alimentos é, historicamente, causa de guerras.
E a que se deve esta subida súbita e tremenda do preço dos alimentos? Na base está, é claro, a alta do preço do petróleo e a procura de soluções alternativas, com a bênção dos ecologistas. Com a meta já traçada de ter, em 2020, 10% dos transportes a funcionarem a biocombustíveis. E, aí, o milho vai para quem tem maior poder de compra. Isto é, deixa de ir para a barriga dos pobres, para ir para o depósito dos nossos carros. Mas será só isso? Não. Aqueles 95% de que falo acima, isto é, a especulação dos mercados, faz o resto.
Macedo de Cavaleiros, 14 de Abril de 2008
Fernando Mascarenhas
quarta-feira, abril 16, 2008
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